sábado, fevereiro 10, 2007

Só saudade [O passado da Bic]

Dia desses fui visitar minha avó. Entrei em seu quarto, aquecido e aconchegante como na época em que eu era pequena e cabia no colo dela.
Ela estava lá, coberta com uma manta que ela mesma bordou, deitada em sua poltrona.
Há algum tempo uma doença cruel e implacável vem roubando sua mente. Primeiro a fez confundir os pensamentos cotidianos, em seguida atacou sua memória e dia após dia apaga um pedaço da sua história, deixando no lugar um triste e silencioso vazio.
Ultimamente minha avó mal tem conseguido falar. A doença agora rouba suas palavras.
Como de costume, sentei-me ao lado dela para conversar. Pode parecer tolo conversar com alguém que aos olhos da medicina é incapaz de compreender, mas de alguma forma devia isso a ela.
A mulher que me ensinou tantas palavras quando eu era bebê, que esteve ao meu lado quando comecei a dar meus primeiros passos nesta vida.
Hoje ela não sabe mais andar. Hoje ela mal consegue pronunciar as palavras que ela própria me ensinou.
Para meu espanto, no dia da minha visita ela estava um pouco mais lúcida, então arrisquei-me a falar sobre fatos do passado. E ela me respondia com os olhos azuis e brilhantes sobre sua cidade natal.
Então perguntei:
- Vó, do que você mais tem saudade?
Ela olhou para baixo, com uma certa nostalgia.
- Domingo! Era quando todos almoçavam... - enquanto procurava a palavra certa, completei - Era quando todos almoçavam reunidos?
- UNIDOS - disse ela, mostrando a sutil diferença enntre estarmos reunidos e sermos uma família unida novamente.
Ela levantou os olhos e disse:
- A saudade nos leva para perto daquilo que a gente ama!
Naquele momento pude perceber que no fundo dos olhos azuis da minha avó, ela lutou contra sua doença, sua dificuldade de vocabulário, contra as possibilidades médicas de recuperação e fez um esforço danado pra me dar sua última e talvez sua mais lúcida lição: Doença alguma jamais apagará o amor que ela sente.
Terminei minha visita dizendo à ela:
- Vó, sabe do que eu mais sinto saudade? De você vovó, de você....

6 comentários:

Anônimo disse...

Lindo texto, linda história, resultado: olhos marejados e arrepio.

Anônimo disse...

Já disse o quanto esse txto me emociona!!!
Lindo de morrer!

Tina disse...

Muito emocionada, pois descreve tão bem o que sinto.
Minha avó, que já perdeu também a coerência e as palavras, uma vez estava no hospital e perguntou por mim. E eu me chamo Ana Cristina, não é nome comum nem fácil.
Ela não sabe mais quem eu sou mas o amor continua lá, e assim se emociona toda vez que me vê sem entender porquê.

Samir Nösteb disse...

Como a vida é engraçada... a gente só se toca que algumas pessoas formaram nosso caráter algum tempo depois que nos separamos delas. Como é bom poder dizer o que sentimos - os bons sentimentos, claro, pois o que é ruim geralmente não fazemos questão de guardar pra si - com as pessoas ainda perto de nós, e pra elas!

Marcelo Arantes disse...

Lindas palavras!
Visite-a sempre... Ela precisa disso pra continuar viva.
Beijos
Doc

Unknown disse...

lindo